
Foi só a
partir de 1702, com o trabalho de tradução do francês Antoine Galland, que O
Mundo Ocidental veio a ter conhecimento da existência de um jovem que viveu, há
muitos séculos, em um reino da antiga China. Seu nome: Aladim. O motivo de sua
fama: Uma lâmpada mágica, de cujo interior surgia um gênio disposto a realizar
três desejos daquele que a tivesse esfregado por três vezes. O detalhe: A
história ficou conhecida, nos quatro cantos do planeta, como ficção fantástica.
Logicamente, não poderia ser diferente. Quem daria um outro rótulo, senão o de
conto de fadas, a uma narrativa dessa natureza. Entretanto, o que de fato se
põe, aqui, como um abismo entre a fantasia e a realidade são os tantos séculos
passados e, consequentemente, as tantas transformações que culminaram com o,
contemporaneamente chamado, Mundo
Pós-moderno.
O
choque: Claro que, em pleno século XXI, em um ambiente hostil a Papai Noel, e
hostil é na verdade um eufemismo, porque o bom velhinho não conseguiu sobreviver
a tamanhas mudanças sociais, e morreu entregue à própria sorte... Bem, nesse
contexto de avanços e atropelos tecnológicos, o que quase todos ainda ignoram é
que o tal Aladim era de nacionalidade chinesa; e o que quase todos ainda
continuarão a ignorar é que a tal Lâmpada Maravilhosa existe ad litteram,
ou seja, literalmente existe, se bem que tenha, da mesma forma, passado por
rigorosas adaptações, em consonância com as leis
darwinistas.
A
comprovação: Ademir ̶ o nome árabe não é coincidência ̶ foi sempre um jovem
rebelde, resistente à disciplina familiar, refratário ao aprendizado do ofício
paterno, e que, aos dezoito anos de idade, invariavelmente, preferia brincar a
trabalhar.
Acontece
que o jovem Ademir, perambulando, em uma segunda-feira, pelas areias desertas de
uma praia do litoral catarinense, avistou a sua frente um gargalo de garrafa
que, sutil, despontava, como uma pequena torre de vidro, na superfície arenosa .
Contra todos os cálculos da opinião pública, sua índole o impeliu a retirar o
objeto da areia, pois poderia se tratar de uma garrafa quebrada, constituindo,
portanto, uma ameaça a qualquer pessoa que, desavisada, caminhasse por ali ̶ não
na segunda-feira, mas quem sabe no sábado ou no domingo ̶ E assim o fez! Puxou-a
pelo gargalo e constatou que a garrafa estava intacta, envolta por uma compacta
camada de areia acinzentada. Pois bem, ele instintivamente começou a espaná-la
com a mão direita, enquanto com a esquerda, em forma de guindaste, mantinha-a
pendurada à altura dos olhos oblíquos e negros. Logo, pôde ler, no rótulo
amarelado, a palavra HOFER, e mais acima, as palavras VELHO BARREIRO, que se
repetiam em relevo, incrustadas na própria garrafa. O gargalo era guarnecido por
um anel vermelho e lacrado por uma frágil tampa acrílica. Não houve explosões
nem fumaça, mas enquanto Ademir ainda terminava a operação de limpeza da
garrafa, sentiu, um pouco abaixo da nuca, um leve toque de um dedo indicador.
Virou-se e viu o que julgou ser um turista, pois, certamente, tratava-se de um
oriental, apesar de que nunca houvesse visto antes um oriental de olhos
vermelhos. Algumas coisas mudam; outras nem tanto! O Gênio se apresentou como
uma criatura superior, um espírito evoluído, porém condenado a habitar o
interior daquela garrafa até que satisfizesse, plenamente, o desejo daquele que
o despertasse de seu sono através dos séculos, ou seja, de seu amo, mestre e
senhor! O Gênio fez toda a explanação de forma concisa e fluente. Ademir
entendeu tudo, acreditar é que foi difícil. Difícil para ele; não para o Gênio
que aproximou diante dos olhos do amo os dedos indicador e polegar, unidos pelas
pontas, formando, no vazio entre eles, uma pequena circunferência na qual
enlaçara a cabeça de Ademir, reduzida a não mais do que uma ameixa. É redundante
dizer que o rapaz entrou em pânico. O Gênio acalmou o jovem mestre, dizendo-lhe
que bastaria crer para que sua cabeça voltasse ao tamanho normal. Nunca se viu
uma conversão tão rápida quanto a de Ademir, que mal ouvira aquelas palavras e
já sua cabeça ganhava as proporções anatômicas naturais. Sim, Ademir acreditava
veementemente no gênio e na garrafa mágica de velho barreiro. Por fim, recebera
do Gênio as últimas instruções. Soube que, na verdade, jamais houve três
desejos. A lâmpada, sim, exigia o passe místico de que a esfregassem, no mínimo,
por três vezes. Quanto ao desejo, embora não houvesse restrições, era, sempre
foi e sempre será, apenas Um. Durante toda a conversa, o Gênio mantinha os
braços cruzados, porque algumas coisas mudam; outras nem tanto! Ele advertira
seu amo, Ademir, de que nenhum de seus antecessores obteve sucesso na realização
de seus desejos. Tudo porque eram descuidados na forma como verbalizavam seu
único e precioso pedido. O Gênio ainda sentenciara que apenas quando aquele que
o invocar sentir-se satisfeito com o desejo realizado pelo poder da lâmpada
(leia-se: pelo poder da garrafa mágica de velho barreiro) só então ele estaria
livre da maldição de habitá-la através dos séculos. Talvez, porque Ademir achara
difícil crer que fosse tão complicado satisfazer um desejo, mesmo insistindo com
o gênio que acreditava nele sem restrições, enquanto protegia a cabeça com ambas
as mãos, o mago da garrafa citou-lhe alguns casos mais recentes que lhe vinham à
memória, ocorridos nos últimos séculos. Houve um tal Sandro, já com seus trinta
anos de idade, que sofrera por uma década uma desilusão amorosa a qual não
conseguia superar. Já era noivo quando, aos vinte anos, seus pais vieram lhe
dizer que Fernanda viajara para a Europa com a família, e de lá não mais
voltaria. Amava tanto a noiva perdida no tempo e no continente que abdicara de
riquezas e prazeres inimagináveis para pedir ao Gênio que a trouxesse de volta a
seus braços carentes de amor. Assim o pediu, assim o fiz! Era a citação mística
indispensável ao cumprimento da mágica e realização do desejo. O que Sandro não
esperava era receber nos braços os ossos desarticulados que compunham o
esqueleto de Fernanda, falecida há mais de seis anos. Assim o pediu, assim o
fiz! Cento e vinte anos depois, quem lhe esfregou a lâmpada ̶ nesse tempo era de
fato uma lâmpada ̶ foi uma jovem mulher, entre vinte e cinco e trinta anos, já
casada, de lindo rosto, lábios carnosos, olhos verdes e conquistadores, dentes
brancos e regulares, cabelos fartos e sedosos, mas que sofria desde a juventude
por ser tão obesa quanto a mãe era ou quanto a avó tinha sido em vida. Seu
pedido também dispensara riquezas e prazeres inimagináveis para, entre lágrimas,
implorar ao Gênio que a fizesse tão esbelta que as pessoas morreriam de susto ao
vê-la tão elegante. Assim o pediu, assim o fiz! O Gênio teve que dar um sumiço
em cento e trinta quilos de pura gordura corporal, mas conseguiu transformar a
jovem em uma verdadeira garota de Ipanema. A primeira pessoa que a viu assim
transformada foi o marido, o qual antes de morrer conseguira lamentar, de
maneira sofrida, que tomara um grande susto ao vê-la tão elegante. A esposa,
desesperada, saiu em busca de auxílio, e cada pessoa que a via, tal qual o
marido, caía morta, balbuciava as mesmas lamentações do cônjuge falecido, todos
pareciam querer se desculpar por morrerem de susto ao vê-la tão elegante. Não
demorou muito para que ela entendesse o que se passava e o que ela deveria
fazer. Atirou-se, abraçada a uma enorme pedra, no leito profundo de um rio que
cortava a cidade. Assim o pediu, assim o fiz! E o Gênio apresentou-lhe mais uma
dezena de casos similares, ficando mais triste à medida que os ia relatando.
Assim
feito, descruzou os braços, posicionou-os esticados à frente do corpo, as mãos
abertas e com os dedos separados tanto quanto permitiam suas articulações e
avisou ao seu amo, Ademir, que chegara a hora de fazer seu pedido. A lâmpada
assim o exigia. O jovem já estava decidido a um bom tempo. De fato, pouco ouvira
da narrativa do Gênio, pois perdia- -se em seus raciocínios em relação ao teor
de seu pedido. Ademir suspirou e proferiu de uma só vez o seu desejo: queria que
o Gênio lhe concedesse o maior poder que a humanidade já conhecera. Queria estar
cercado, por todos os lados, da maior riqueza já produzida pelo homem. Queria
possuir toda a inteligência de todos os povos civilizados. Queria ser admirado
por todas as pessoas do planeta.
Por fim,
convenceu o Gênio de que, embora tivesse utilizado quatro frases para expressar
seu desejo, o que ele pedia era uma coisa só. Apenas dissera o mesmo de formas
diferentes, justamente, para evitar que a realização de seu desejo fracassasse.
O Gênio, ainda mais triste, repetiu seu passe mágico. Assim o pediu, assim o
fiz! Não houve explosões nem fumaça, mas, quando Ademir terminou de falar,
percebeu que o Gênio lhe oferecia uma cadeira de madeira escura, e pedia-lhe
para que a ocupasse ali mesmo, no meio do nada arenoso, à beira da praia
deserta. O Gênio, então, posicionou-se de pé, atrás da cadeira, e lhe vendou os
olhos com as mãos almiscaradas. Ouviu, pela última vez, a frase mística. Assim o
pediu, assim o fiz! Logo, notou que o vento parara de soprar, já não ouvia
também o marulho das ondas. As mãos do Gênio tornaram-se mais leves e perderam a
fragrância perfumada. Na verdade, já tinham outro cheiro, bem menos agradável.
Cheiravam a mofo! Ademir abrira os olhos num suspense agônico. Não estava mais
sentado à beira da praia. Tal qual a cadeira oferecida pelo Gênio, agora havia
dezenas de outras, agrupadas de quatro em quatro, à volta de pequenas mesas.
Estava no interior de uma construção semelhante a um palácio, cujas paredes se
revestiam de enormes prateleiras, todas repletas de livros, livros aos milhares.
Ademir estava em uma biblioteca! Sobre a mesa onde o Gênio o transportara, em
uma das páginas de um enorme livro aberto, lia-se: Assim o pediu, assim o fiz!
Quanto ao Gênio...Ele continua cumprindo sua maldição, habitando o interior da
garrafa através dos séculos!
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