Pedalou
vinte minutos para chegar em casa. Percurso de subidas. Mais um dia de trabalho.
Desde a saída da fabriqueta de esquadrias de madeira, pensou na Maria – sua
esposa. Pensava na situação dos dois a partir de janeiro. A pequena empresa
fecharia as portas no último dia do ano. Tudo muito difícil! Aluguel do prédio,
matéria-prima e componentes, impostos, obrigações sociais... O dinheiro estava
escasso. Outro grande problema era receber o pagamento dos trabalhos executados.
O décimo terceiro dos quatro empregados foi pago em minúsculas parcelas. E com
dificuldades! Falar para a mulher que no primeiro dia do novo ano seria mais um
desempregado?
No portão, Maria o esperava. Barriga enorme,
(quase nove meses de gravidez), encurtava-lhe o vestido. Os vinte, ou trinta
metros, que levou para chegar perto da futura mamãe tornaram-se quilométricos.
Faltava a coragem para contar à esposa a situação. O seguro-desemprego era por
pouco meses. Se não arrumasse, logo, outro serviço? Trabalhava na carpintaria há
seis anos. Estava com vinte e três. Decidiu: “vou contar,
agora!”
Maria estendeu-lhe as mãos, queixando-se com
voz sofrida:
– Zé, está perto. Passei o dia inteiro com
dor nas costas, na altura dos quadris. Às vezes, acho que estou fazendo xixi. É
um pinguinho de nada...
– Não é para dois de janeiro? Faltam dez
dias, Maria!
– Eu posso ter me enganado nas
contas.
– A última vez que tu menstruou foi em
primeiro de abril. O médico do Postinho marcou entre dois e quinze de janeiro.
São nove luas cheias!
– Zé, tua mãe falou que primeiro filho
sempre adianta.
– São onze horas, guria, vamos comer uma
coisa! Estou com fome. Quando amanhecer vamos atrás de atendimento. Dá para
esperar? ...
Antes das cinco da manhã José ouve um
gemido.
– Que foi, Maria?
– Ai, Zé, doeu mais forte!
– É assim mesmo, Maria, é assim! Vamos
controlar as contrações. O doutor avisou: quando ficassem de cinco em cinco
minutos a gente vai para o hospital. Fica calma!
Distante os sinos da igreja bateram seis
horas.
– Zé, vamos ao Postinho. Acho bom!
José pegou a carteira de trabalho e o cartão
de saúde da Maria, colocou num bolso da camisa junto a alguns trocados – não
somavam dez reais – montaram na bicicleta. Foram ao Posto. Não havia médico. A
atendente, bocejando, olhou pela basculante e orientou que fossem ao
hospital.
Horrível morar longe de tudo! Horrível não
ter dinheiro para ônibus! No trajeto de bicicleta, Maria chorava. Era olhada por
todo mundo. Um barzinho abria as portas, os dois pediram água. O botequeiro,
saindo de trás do balcão, falou grosso:
– Ô cara, se manda daqui logo! Se essa
criança inventar de nascer, agora, vai estragar meu dia! ...
Seguiram caminho. O hospital estava perto.
Andavam devagar. Zé empurrava a bicicleta. A jovem caminhava cheinha de
dor.
– Zé, vamos parar um pouco? Quero mijar.
Podemos pedir àquela mulher, lavando a calçada, para ir ao banheiro.
Tiveram por resposta:
– Pobrezinha! Não posso deixar entrar. A
patroa ficaria uma fera. Moça, não te judie! Vá detrás daquela árvore e abra a
torneira! No seu estado, ninguém vai dar bola!
O casal prosseguiu. Adiante, Maria sentou-se
no muro de uma residência. Uma garota gritou para a mãe: “uns marginais estão
espiando o nosso pátio! Devem ter roubado uma bicicleta em outra casa!”. A mãe
reagiu:
– Vão embora! Vou soltar os
cachorros!
Chegaram ao hospital. O sol estava quente.
Maria estava pálida, choramingava. O estômago de Zé, colado nas costas de tanta
fome, doía. A gestante acomodou-se num banco. José foi guardar a bicicleta. Uma
mulher idosa, gente humilde, aproximou-se de Maria, segurando-lhe uma das
mãos:
– Primeiro filho? Marinheira de primeira
viagem! Isso é assim! Sofre na hora de botar para fora, mas na hora de botar
para dentro (suspirou). Eu tive doze. Quatro nasceram mortos. Tu já tem nome
para teu guri? Bota o nome de Mateo, é nome de artista de novela. Ou Ronaldinho,
ou Zezé de Camargo.
O futuro papai (de Mateo, ou Ronaldinho, ou
Zezé de Camargo) veio ao encontro da esposa.
– Em meia hora a enfermeira te
chama.
Olhando para José, a senhora que conversava
com Maria, continuou:
– Veja teu trabalho (apontando com o queixo
a parturiente). Tu tá aí, bonitão, sem dor nenhuma! Para vocês homens tudo é
fácil. É só gozar. A gente é que fica nove meses carregando a tua satisfação na
barriga. (A barriga de Zé roncava ...) A gente sofre para parir, tem o trabalho
de criar, depois de algum tempo somos trocada por outra mais nova, sem filho na
barra da saia. Sabe, vizinha, eu tive um patrão, quando nascia filho macho,
fazia um festerê. Filha mulher, hum! Ficava dizendo o que podia e o que não
podia fazer quando ficasse moça. Ele sabia, sabia, somos nós quem carregamos a
cruz!
Uma funcionária apareceu numa portinhola e
chamou:
– Maria Nazarena Nascimento dos
Santos!
A grávida e o marido atenderam o
chamado.
– Somente ela entra. O senhor espera aqui
fora com as sacolas!
José estava cansado. Largou as bagagens no
chão e agachou-se ao lado. A fome atacava-o cruelmente. Uma mulher baixinha com
cara de nordestina ofereceu-lhe um sonho. Devorou. Lembrou-se que não tinha
agradecido. Procurou, com os olhos, a caridosa senhora não a encontrando. Zé
adormeceu. Ouvindo a voz da esposa, abriu os olhos. Ela caminhava, com
dificuldade, pernas abertas, as duas mãos sob o ventre, segurando-o. A auxiliar
de enfermagem avisou:
– Pode voltar para casa, o bebê é para a
outra semana.
José quis dialogar, porém a moça já atendia
a outra paciente que, horas antes, teve a bolsa rota. Chamou Maria:
– Vamos embora!
– Zé, que dia é hoje? Que horas?
– É sete da noite do dia 24.
– Zé, vamos fazer um lanche? Você tá com
dinheiro?
Lembrou-se que o patrão prometera um vale
para a tarde deste dia. O que fazer, agora?
No “treiler”, Maria bebeu um copo de batida
de banana; José comeu um pão com margarina e um copo de café preto. Descansaram
um pouco. Anoiteceu. Retomaram o caminho para casa – José, Maria e a
bicicleta.
As ruas por onde passavam eram iluminadas.
Muitas luzes coloridas. Um Papai Noel, com um saco repleto de presentes, entrou
numa residência. Sininhos tocavam vindos de todos os lados. Nas casas as pessoas
abraçavam-se, sorriam. Lágrimas escorriam dos olhos de Maria. Os sapatos
apertavam. Sentia mais fortes as tais contrações.
Encontraram pela frente uma maternidade
recentemente construída e inaugurada. Num pacto silencioso o casal para lá se
dirigiu:
– Moço, minha mulher está dando à luz. Por
Deus, faça alguma coisa. Ela não aguenta mais!
– Vocês tem plano de saúde? Mesmo tendo, há
uma caução de dois mil reais. Aqui é particular. Não posso fazer nada. Procure o
atendimento do SUS.
– Ah! Maria, Maria! Pelo nosso filho,
coragem! Deus vai cuidar de você, do gurizão!
Os jovens e a bicicleta tomaram a estrada
rumo à casa. Mudos. A voz da mamãe quebrou o silêncio:
– Olha, Zé, uma luz!
O “giroflash” de uma viatura se
aproximava.
– Amigo, ajude! A Maria está sofrendo. Não
tem mais forças para viajar montada numa bicicleta! Por favor, ajude!
Dois brigadianos carregaram a mulher e a
colocaram no carro, com muito cuidado. Maria exalou um suspiro de
alívio.
– Moça! Exclamou um soldado negro, de
grandes mãos, voz acolhedora – Vamos cuidar da senhora. Vamos levá-la ao
hospital.
Acomodada a grávida, ligada a chave do
carro, antes da partida um dos ocupantes do veículo, exclamou:
– Sargento, a criança está
nascendo!
Os parteiros tranquilos, trocando poucas
palavras, faziam o parto. O bebê chorou. Uma cão vagando, solitário, veio
bisbilhotar. Um homem de longas barbas brancas, roupa vermelha, fantasiado de
felicidade, tripulando uma moto, passou badalando um sininho. Um chevete velho
parou e três passageiro queriam saber o que acontecia. Um homem alto, caindo de
bêbado, boca mole (cheia de línguas), assegurou:
– Vocês hão de convir: o nascimento de uma
criança é prova que o meu amigo, Jesus Cristo, nos ama e ainda tem confiança na
humanidade!
Seu companheiro (no escuro não foi possível
identificar se era um rapaz ou uma moça) assegurou:
– Aí, coisa “tri” é o parto! Me sinto
arrepiar ...
O terceiro tripulante do chevete – o
motorista – explicando para os militares:
– Não liguem para estes dois despojados. São
gente boa. Vou levá-los para suas casas!
Embarcados no automóvel, o bebum pela
janela, desejou:
– Feliz Natal!
O voz de barítono da equipe de
partejamento:
– Sargento, podemos ir. Está tudo em ordem.
O resto é com o hospital. O nenê é perfeito e a mãe é feliz! Virando para o pai,
encolhido num canto, perguntou qual o nome do varão:
– O mesmo nome do meu avô –
Emanuel!
O rádio de um fuquinha verde, guiado por um
senhor calvo, transmitia uma conhecida canção:
– “Noite Feliz ... ó Senhor, Deus do amor...
Dorme em...”
O careca desligou o
rádio.
Ione Jaeger _ Novo Hamburgo, RS
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