Dezembro
vai começar! É tempo de brincar de amigo secreto. Começamos pelos rebentos e
terminamos nos decrépitos. De mamando a caducando, os que querem e os que não
querem irão participar, ‘não? Você não vai participar do amigo secreto deste
ano?!’ ‘Ainda estou pensando. Até quanto será o presente?’ ‘Uma lembrancinha. Eu
estou montando a lista de sugestões, quer sugerir algo?’ ‘Estou pensando.’ ‘Vai
pensando, mas não demore, fecharei a lista no final da semana.’
‘Tá.’
Há quem
concorde em participar prontamente e ainda se saia com o clássico ‘Este ano já
estou participando de três, será o quarto com este [sorriso].’ Na escola, no
trabalho, na comunidade religiosa, no grupo de qualquer coisa e no balé das
crianças de dez até doze anos. Não. No balé este ano não haverá brincadeira de
amigo secreto. É que amiga secreta nem sempre guarda segredo de sua querida
amiga desafeto.
Os
papeizinhos. Sim, os velhos e dobradíssimos papeizinhos do segredo. O selo do
enlace, a chave do mistério, o bem que alguns desdobram e vislumbram com
surpresa e alegria. E..., espere um pouco, devo dizer que alguns desembrulham o
papelzinho e o vislumbram com decepção e desprezo? Isso não. Não seria de bom
tom. Mas a pequena bailarina o fez. Pequena em idade, porém grande em tamanho,
peso e rancor.
Uma a
uma as meninas foram tirando e lendo e reagindo aos nomes grafados à caneta
esferográfica azul nos improvisados pedacinhos de uma folha de um caderno
espiral pautado, um da secretária que é estudante e o trazia na bolsa. Havia
quem pulasse de alegria e compartilhasse o segredo disfarçadamente, muito mal
disfarçadamente, diga-se de passagem, com a colega supostamente mais confiável.
Talvez por empolgação, mas certamente com o inconsciente desejo de ingressar no
mercado negro de amigos secretos e, quem sabe, até negociar a prenda com alguém
mais interessado e assim ser legal, ou até mesmo obter algum nome mais
interessante.
Num
canto não tão periférico da sala, a bailarina grande pesada e rancorosa olhou o
papel e fez cara de poucos amigos. Disse ‘Que droga! Eu odeio essa menina! Ela
me enche o saco todos os dias. Eu não gosto dela! Vou comprar um presente bem
podre pra ela.’ Amassou o papel com a força do desejo de amassar a amiga secreta
magra e o lançou ao cesto de lixo como se lançasse a própria menina mal querida
amassada.
Se não
estiver enganado, foi Lacan que certa vez disse, provavelmente quando tinha seus
seis ou sete anos de idade ‘A criança é um perverso polimorfo’. Lacan deveria
ter lá seus motivos pessoais naquela feita.
Como um
enxame de fadinhas, nem bem a bailarina grande e pesada se afastasse do local do
sorteio, correram ao cesto para apanhar, desamassar e desvendar o mistério da
detestada. E a detestada não estava tão distante que as outras não a alcançassem
primeiramente com os olhos e em seguida com a notícia ao pé do ouvido.
Empalideceu a pobre que já não era lá das mais coradas. O sangue lhe abandonou a
face e os finos lábios separaram-se e entreabertos ficaram. O pequeno papelzinho
com o seu nome agora lhe pertencia e ela o segurava com as duas mãos, diante do
rosto pasmo.
Não fez
segredo de sua decepção para com a amiga secreta. Ao iniciar o choro, viu-se
imediatamente interpelada pela mãe que a fora buscar por ser já hora do fim da
aula. Entre suspiros, soluços e densas lágrimas, disse, aos solavancos, com o
papelzinho ainda pinçado pelas pontas dos polegares e indicadores das duas mãos
finas ‘Mã ãe, e eu não qué, quero ma, mais i, ir na, ca a sa, da, bai la, ri na
gran de e pe sa da... Eu, eu, eu não sa bi a que, que, que ela
achavaissodemiiimmm...’
O
assunto girou a sala inteira. As mães que aguardavam na sala de espera,
pacificamente tomavam o local do sorteio. A professora bailarina achou por bem
encerrar o assunto, ao menos naquele momento, com a anulação da brincadeira.
‘Não haverá mais amigo secreto este ano e pronto!’ Outra bailarina se aproximou
à grande e pesada e cochichou ‘Aí, tá vendo? Por sua causa. Por sua culpa.’ Ao
que a outra deu de ombros como se fosse uma lacaniana precoce bem resolvida
quanto aos dilemas da infância.
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