Meus já longos anos de existência me ensinaram algo: a língua é um sistema de hierarquia social. Certo e errado são convenções que podem ser ignoradas ou cobradas conforme as conveniências. Farei uma afirmação categórica: ninguém fala certo. Ninguém fala totalmente certo. Em momento algum. É impossível. Ficaria pedante demais. A língua é viva. Sou obcecado por algumas mudanças. Quer dizer, fico pensando quando elas terão acontecido. Acho que já escrevi sobre isso. Mas, como estou gagá, vou certamente escrever de novo. São questões transcendentais, quase metafísicas, de imaginário. Quando passamos a dizer "oi" em lugar de "ó"? Por que o "ó" se tornou obsoleto e até ridículo? Por que o "oi" nos parece mais moderno e convincente? O que houve com o "ó"? Em que momento, para ser muito claro, o "ó" caiu em desgraça?
Em que momento histórico os bacanas passaram a dizer bacana em vez de legal? Em alguns casos, questiono meus amigos narradores de futebol: quando foi que deixaram de dizer descontos e passaram a falar em acréscimos para se referir aos minutos definidos pelos árbitros a se jogar após os 45 do tempo regulamentar? Não encontro resposta. Há situações claramente induzidas pela mídia. "Risco de vida" passou a ser "risco de morte". Parece lógico. No fundo, é literalidade, tipo piada, de português. Na expressão "risco de vida" está subentendida a ideia do "risco de perder a vida". É sutil e inteligente. Ninguém pode pensar que seja risco de viver. Por que então essa necessidade positivista de enfatizar o risco de morrer? Risco de morte, de certo modo, é quase como dizer "subir para cima". Menos, não? Sim, menos. Mesmo assim, demais.
Há quem sonhe com uma língua sem ambiguidades. As línguas naturais, no entanto, são maravilhosas justamente pelo contrário. Tenho saudades do "ó". Ninguém mais se atreve a pronunciá-lo. Revela a idade. O "ó" está tão desgraçado quanto o ponto e vírgula. Só usa ponto e vírgula, salvo em enumerações mais longas, quem tem mais de cem anos. Quando começou a decadência do ponto e vírgula? E do conosco? Não defendo o "com nós". Noto que o conosco foi substituído pelo "com a gente". Quando surgiu o gerúndio de telemarketing (vamos estar transferindo a sua ligação)? Com o telemarketing? Por que o futuro do presente sofre bullying? Pouca gente aceita dizer "eu farei". Quase todos preferem "eu vou fazer". Tenho acompanhado a agonia do pronome reflexivo. Cada vez se diz menos "ele se machucou". Virou "ele machucou", "ele aposentou". Por um lado, procura-se economizar. Dizer mais com menos. Por outro lado, diz-se menos com mais: vou estar enviando seu relatório (enviarei). Uau!
Lembro-me de um tempo em que se dizia: "farei uma observação" ou até "observarei". Hoje, ninguém mais faz observações. Todo mundo faz colocações. Recuso. Ninguém vai me colocar coisa alguma. Atenção: não reclamo, não condeno, não julgo. Constato. Agora, enfim, a pergunta que mais me angustia: por que, mesmo no Rio Grande do Sul, jogador de futebol jovem é "garoto"? Mistério total.
(Juremir Machado da Silva _ Jornal Correio do Povo)
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